Uma das homenagens ao centenário de nascimento de Franklin Cascaes (1908-1983), o mais arguto pesquisador das tradições da Ilha de Santa Catarina, é a publicação de Franklin Cascaes, o mito vivo da Ilha (Mito e magia na arte catarinense), da crítica de arte Adalice Maria de Araújo.
O volume, publicado pela Editora da UFSC, apresenta uma análise dos aspectos lúdicos, profanos e religiosos da obra de Franklin Cascaes, incluindo figuras como bruxas e lobisomens. No livro sobre o artista, que também foi desenhista, ceramista e escultor, o imaginário sobrepõe-se ao real. Com ele, a EdUFSC facilita a vida de quem deseja entender melhor a cultura de Florianópolis e região, por meio de uma de suas figuras mais emblemáticas.
A obra derivou de outra, Mito e magia na arte catarinense, de 1978, tese na qual a crítica paranaense analisava a produção artística em terras de Santa Catarina e que repercutiu numa mostra sobre o tema na I Bienal Latino-americana de São Paulo, no mesmo ano, reunindo Cascaes e Eli Heil. O volume reeditado pela EdUFSC trata apenas de Cascaes, num texto revisado, reorganizado e atualizado, de forma a atender especialmente o público escolar, universitário, como convém à vocação da editora.
Na obra, a autora faz uma análise do processo criativo de Franklin Cascaes, que deixou milhares de peças, muitas delas ainda hoje guardadas no Museu Universitário da UFSC. A leitura de Adalice Araújo – que fez uma série de entrevistas com o artista em 1977 – alcança também o mundo mítico ilhéu, com suas bruxas e assombrações, os diferentes ciclos da mitologia catarinense, as narrativas e festas profanas e religiosas e os principais hábitos e costumes trazidos pelos colonizadores açorianos.
O livro é sumamente enriquecido pelo prefácio – um misto de testemunho e crônica de saudade – do museólogo Gelcy Coelho, o Peninha, que é o mais respeitado seguidor do mestre, a quem conheceu no início dos anos 70. O primeiro contato com os trabalhos expostos no Museu de Antropologia da UFSC provocou arrebatamento. Falando sobre as peças, Peninha escreveu: “Estão todas flutuando num universo interplanetário, em comunhão com o esplendor divino e celestial (…), ao mesmo tempo terráqueo, demoníaco, caboclo, sertanejo, ingênuo, profundo e, por isso, sublime”.
Nas reminiscências, Peninha fala do processo de trabalho de Cascaes, de seu inseparável caderno de anotações e das entrevistas que fez em todos os cantos da Ilha acompanhado da mulher, a professora Elizabeth Pavan Cascaes, que tocava piano e bandolim e foi o arrimo do mestre durante seus longos anos de pesquisas. Ele faz também uma minuciosa descrição da residência do casal, na rua Júlio Moura, centro de Florianópolis, com seus elementos de religiosidade e seus “móveis sólidos, escuros, austeros”. E se detém na relação entre mestre e aprendiz no Museu Universitário, marcada por trocas e provocações, desafios e uma parceria que se estendeu até a morte do artista – e que, na prática, subsiste até hoje, por meio da preservação e difusão da obra de Cascaes.
Na linhagem dos grandes artistas
Na linguagem metódica dos críticos, Adalice Araújo se debruça sobre o conjunto da obra de Franklin Cascaes, seu processo criativo e o registro e a ilustração de elementos fantásticos como bichos que falam, seres que voam, bruxas, curupiras, vampiros – enfim, o rico imaginário sobrepondo-se ao real, ao cotidiano.
A autora chama a atenção também para a “pureza infantil” que caracteriza a obra de Cascaes, para a matriz popular que a inspirou, para o “underground mítico” que o inscreve “na linhagem dos mestres fantásticos e surrealistas”. Os registros escritos e os trabalhos bidimensionais e tridimensionais – um legado de cerca de 2.700 peças, incluindo esboços, composições, desenhos e figuras em argila e gesso – possuem uma imensurável importância documental, porque ajudam a preservar a rica tradição mítica do povo ilhéu.
A questão da bruxaria merece uma atenção especial, com uma longa análise das categorias bruxólicas, sua caracterização e iniciação, aspecto físico, locais onde aparecem, as metamorfoses, os congressos e até as armadilhas utilizadas pelos mais receosos para neutralizar as ações das bruxas. Também há em Cascaes um sentido lírico e erótico que permeia as relações entre bruxas e boitatás, que se afina com a atmosfera onírico-mágica da Ilha. Esse era um tema caro ao pesquisador, que tem partes de seus relatos reproduzidas no livro de Adalice Araújo, assim como desenhos em nanquim e minúsculas esculturas em argila retratando bruxas como as descritas pelos antigos moradores do interior de Florianópolis.
A autora do livro também se detém na descrição do ambiente em que se deu a formação do artista. A vida em Itaguaçu, bairro então pertencente ao município de São José, era muito ligada à pesca artesanal e à pequena agricultura, e também às festas e cultos religiosos. Isso influenciou muito a criação de Cascaes, que igualmente assimilou as referências ao fantástico, presentes nas conversas dos trabalhadores braçais. Dali veio, pela grande tradição das olarias na região, o gosto pela escultura – inicialmente em areia na praia, depois com argila, que foi uma atividade quase diária ao longo da vida.
Desse mister derivam as inúmeras figuras de peças em barro reproduzindo carros-de-boi, engenhos e pescadores, além de trabalhos extremamente elaborados retratando mulheres descaroçando algodão, urdindo no tear e torrando café caseiro. Sua temática inclui ainda peças de carpintaria e cestaria, cruzes caboclas e coleções inteiras recriando a procissão do Senhor dos Passos, as festas do Divino, a brincadeira do boi-de-mamão, o ritual do cacumbi, as festas juninas, os folguedos infantis e os festejos populares.
Mais informações na Editora da UFSC, pelo fone (48) 3721-9408.
Por Paulo Clóvis Schmitz/ Jornalista na Agecom