O foco do documentário “Entrelinhas”, que será exibido dia 04 de setembro na Fundação Cultural Badesc, é o diálogo da equipe de produção com o imaginário de pacientes internados no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado de Santa Catarina (HCTP).
Serão duas sessões, a primeira às 19h, seguida de um debate com os convidados José Geraldo Couto, crítico de cinema da Folha de S.Paulo, e Maria Cristina Riesinger Pereira, médica, picoterapeuta junguiana e antropóloga. A segunda sessão será às 21h, ambas com entrada livre.
A proponente do projeto contemplado no III Edital Armando Carreirão do Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis, Letícia Cardoso, artista plástica com mestrado em artes visuais, tem como investigação poética o paradoxo entre a transitoriedade de um acontecimento e o seu registro em fotografia e vídeo.
“O tempo acabou se tornando não só um aspecto importante do espaço fílmico, mas uma condução mesmo da narrativa” afirma a artista, que assina o roteiro, direção e produção em parceria com o cineasta Pedro MC, que neste ano lançou seu documentário de longa-metragem “Maciço” , ainda em circuito de exibição.
“Para conseguirmos realizar a proposta de abordagem estética do projeto, optamos em minimizar o corpo de produção. Ao invés de uma equipe com formação clássica, nos dividimos nas tarefas com três câmeras”, revela Pedro.
Apresentada a proposta à direção da Penitenciária Estadual de Santa Catarina, Letícia e Pedro começaram então a frequentar o HCTP a partir do final de 2008 até junho deste ano, capturando cerca de 25 horas de material bruto.
O dispositivo de filmagem foi baseado num conceito definido por Freud como “atenção flutuante”, que consiste numa escuta sem preocupação imediata com o que poderá ser retido da conversa. Dessa forma os diretores se colocaram numa situação de aleatoriedade desejada, sem entrevista pré-marcada abrindo espaço à espontaneidade das falas.
Considerados esquizofrênicos, os próprios pacientes/personagens abordavam a equipe, e quatro deles se destacaram pela intenção e intensidade das conversas.
M.R. tem várias tatuagens feitas por ele próprio. Além de desenhar ele escreve poesias. Numa delas define os pacientes como “pássaros feridos”, capazes de se curar com o tempo. Seu maior desejo é atuar num filme de Kung Fu.
Já V. é um paciente que precisa de terra para plantar. Sua meta é acabar com a fome no mundo, além de projetar a lápis a arca de Noé nas paredes do cubículo.
No pátio seco do Hospital, V. conseguiu cultivar um jardim de rosas vermelhas.
O jovem G. veio de Joinville de bicicleta para ser internado no Hospital. Segundo ele, não existe tratamento de adicção no serviço público e o único local em que há prisão perpétua no Brasil é no manicômio judiciário. A proposta estética criada por Letícia e Pedro contemplou a captação do olhar do próprio interno, e uma das câmeras foi manipulada pelo próprio G.
Muitos deles perderam o vínculo familiar antes mesmo da internação, ainda que já tenham cumprido suas medidas de segurança, isto é, a penalidade. O serviço social muitas vezes não consegue reestruturar estes vínculos familiares, ora por problemas de convívio, ou seja pela situação precária de suas famílias. Aliada à falta de residência terapêutica no estado, o HCTP, criado nos anos 1970, conta hoje com uma população permanente.
É o caso do personagem W. que teve uma “vida intensa de aventuras”, segundo ele próprio. Hoje conversa muito sobre a memória e o tempo futuro, além de se se concentrar no desenho de mandalas (diagramas com figuras concêntricas ricas de simbolismo pessoal). Numa das séries os diretores observaram o uso de ponteiros de relógio como rosas do vento e pontos cardeais imaginários.
A experiência do tempo no universo simbólico de W. é representada quando diz que “aqui eu não preciso de relógio, quando eu estiver na liberdade, sim”.
O documentário Entrelinhas mostra esta relação com o tempo fugidio, a perspectiva de saída, o relógio quebrado no corredor, o tempo morto no pátio onde se caminha sem direção, a rotina regulada das refeições, a hora do remédio, os segundos de recreação, num recorte de 37 minutos de vídeo.
Para montar o projeto, Letícia Cardoso e Pedro MC pesquisaram o trabalho da médica psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1906-1999), que rompeu com as formas agressivas de tratamento do doente mental no país, sugerindo religação de vínculos com a realidade por meio da expressão simbólica e a criatividade.
Nise da Silveira criou o Museu do Inconsciente em 1954, obra que inspirou a edificação do Museu Bispo do Rosário e inúmeros outros empreendimentos no mundo. Nos anos 1980 escreveu roteiros para a série “Imagens do Inconsciente” dirigida por Leon Hirszman, sobre a produção criativa dos doentes mentais.
O doente mental que cumpre pena é estigmatizado como perigoso, desajustado e incapaz de restabelecer um vínculo social. Porém, segundo a diretora, “eles nos apresentaram um universo simbólico diversificado e muito interessante”.
“Durante nossas visitas ao HCTP frequentemente eu ouvia de W. suposições de ‘quando eu for para liberdade’. Várias vezes no verão escaldante eu saía da filmagem me perguntando o que eu vou fazer na liberdade”, relata Letícia.
Muitos dos personagens foram acompanhados na oficina realizada pela professora de Geografia da Udesc, Ana Maria Preve, que realiza doutorado em Educação na Unicamp. Ela percebe a nítida melhora de convívio nos pacientes que se envolvem nos processos de criatividade e auto expressão, as “fugas” pela imaginação, em relação aos que se mantém enclausurados em seus sonhos.
No documentário “Janela da Alma” de João Jardim e Walter de Carvalho, o cineasta alemão Wim Wenders relata que quando criança, começou a assitir aos filmes, querendo ” ler entre as linhas, e na época isso era possível (nos faroestes) ler entre as imagens. Havia tanto tempo entre as tomadas que poderíamos nos projetar dentro deles. Atualmente os filmes são enclausurados, sem espaço para projetar o sonho”.
Para a edição, os realizadores decidiram dividir a tela, em planos que não ficam necessariamente em sincronia, brincando com a simultaneidade no tempo dos acontecimentos. As linhas que separam os planos sugerem dicotomias, inter-relações de antíteses sonoras, e contrastes entre o cárcere e a liberdade.
“Nós discutimos muito com a Yannet Briggiler, montadora do filme, para que o filme primasse pela relação da equipe com os personagens”, acrescenta o co-diretor, que explica porque muitas imagens não entraram no corte final.
“Documentário é um recorte de olhar, as aulas de tapeçaria e tear por exemplo, que são muito interessante em termos visuais e simbólicos, vão aparecer melhor num futuro vídeo institucional que tentaremos fazer”, finaliza Pedro.
Rita de Cássia Darós, assistente social que trabalha vários anos no HCTP, conhece bem o histórico de vários dos pacientes protagonistas. “É muito interessante a produção de um filme para mostrar um pouco do trabalho multidisciplinar que é realizado aqui dentro, que às vezes a sociedade não conhece pela simples falta de oportunidade”. Agora é a hora.
O QUE: Exibição do Documentário Entrelinhas de Letícia Cardoso e Pedro MC
QUANDO: Dia 04 de Setembro de 2009
ONDE: Fundação Cultural Badesc (Rua Visconde de Ouro Preto, 216, Centro, Florianópolis) Fone 3224.8846
HORÁRIO: Primeira Sessão 19h / Debate 20h / 2ª Sessão 21h
DEBATEDORES: José Geraldo Couto e Maria Cristina Riesinger Pereira
ENTRADA: Gratuita
INFORMAÇÕES: Website: http://entrelinhasdoc.tumblr.com
E-mail: entrelinhas.doc@gmail.com
Pedro MC | pedromc@terra.com.br | 8405.5375 / 3025.5375
Letícia Cardoso | cardoleticia@gmail.com | 9926.4224 / 3025.5066