No segundo semestre de 2019, o departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (MIP/CCB/UFSC) oferecerá, pela terceira vez, uma disciplina inédita na maioria das instituições de ensino brasileiras: “Aspectos Éticos em Pesquisa e Ensino com Animais”. O professor responsável, Carlos Roberto Zanetti, decidiu ofertá-la como matéria optativa do curso de Ciências Biológicas por considerar fundamental proporcionar aos estudantes da graduação uma reflexão crítica sobre questões éticas envolvendo o uso de animais no meio acadêmico. “Esse tema diz respeito a todos nós, mas sobretudo aos estudantes cujas profissões lidam diretamente com animais não-humanos. É um debate que vem crescendo nos últimos tempos em nível mundial, mas ainda é raramente abordado em nossas universidades”, afirma o docente.
A disciplina teve boa receptividade desde quando foi oferecida pela primeira vez, no segundo semestre de 2017. Os 30 estudantes matriculados tiveram 36 horas de aula com a participação de convidados de diferentes áreas do conhecimento, como Filosofia e Direito. A primeira versão da ementa apresentava uma perspectiva abolicionista – com argumentos pela extinção do uso de animais para qualquer finalidade – e alguns alunos chegaram a solicitar que o professor incluísse no programa uma perspectiva pró-vivisseccionista – isto é, favorável à dissecação de animais vivos. Zanetti se contrapôs: “Isso eu não vou fazer. Vocês já têm isso durante toda a graduação. Aqui vocês terão contato com uma visão contrária a essa visão hegemônica. Meu objetivo é apresentar-lhes outras possibilidades. Essa disciplina é uma oportunidade incrível de conhecerem um outro ponto de vista.”
Ao final do semestre, a percepção geral dos estudantes foi muito positiva. “Só tenho a agradecer pela oportunidade de cursar a disciplina. Os conteúdos e abordagens me agradaram bastante. Agreguei muito conhecimento, tanto para a vida pessoal, como para a profissional”, afirmou Fernando de Freitas. Tâmela Zamboni Madaloz também considerou o conteúdo apresentado “muito proveitoso”: “Acho extremamente importante, em qualquer curso que seja, nos questionarmos eticamente sobre o que estamos fazendo, qual nosso impacto na vida de outros, se estamos agindo de acordo com o que achamos certo, se não estamos apenas reproduzindo comportamentos sem realmente pensar se deveríamos ou não fazer certas coisas.”
“Fiquei bem feliz com a avaliações que eles fizeram”, relata o professor. “E acho que o reflexo disso foi termos, no semestre 2018/2, 43 alunos matriculados. Só não ofereci mais vagas pois não havia uma sala de aula maior.” Zanetti guarda com carinho todas as avaliações que recebe dos alunos: “Alguns comentários são bem bonitos, eles dizem coisas como: ‘Mudou a minha visão.’ Para outros, reforçou o que eles já sentiam, mas não tinham segurança para dizer, pois não sabiam se havia essa discussão dentro da academia. Mas agora tinham mais subsídios teóricos para poder argumentar quando esse assunto fosse levantado.”
Para Gabriela da Costa Oms, ter a oportunidade de debater um assunto quase sempre ignorado no meio acadêmico foi realmente significativo: “Eu achei a disciplina incrível! Acredito que é de extrema importância para os alunos de Biologia terem um espaço acadêmico bem estabelecido para questionar certas práticas. Devemos ter um olhar crítico para a forma como fazemos ciência. Na grande maioria das disciplinas percebo uma tentativa de dessensibilização no uso de animais. O espaço para críticas costuma ser bem pequeno ou inexistente. Já tive aulas com o tópico ‘Ética’ em que falaram de tudo, menos sobre ética.” Outra aluna, Ângela Cardoso, fez uma avaliação parecida: “Nós somos moldados a não questionar nossas próprias ideias e é exatamente por isso que essa disciplina é tão relevante para os futuros profissionais. Estou convicta de que ela deveria ser obrigatória, tanto para licenciatura como para o bacharelado. Os temas apresentados me fizeram refletir ainda mais sobre o uso de animais na pesquisa e ensino, levando-me a questionar outras pessoas, fazendo-as refletir também. Somente depois de refletirmos podemos mudar nossas ações.”
A disciplina ainda não é obrigatória, mas é pertinente tanto para estudantes do bacharelado, como da licenciatura, conforme argumenta o professor. “Espero que ninguém passe pelo que eu passei, quando entrei na faculdade. Sentia que estava fazendo algo errado, mas aquele era o único caminho que eu conhecia. Os caminhos da vivissecção se abrem muito mais facilmente no meio acadêmico.” Zanetti considera que a disciplina também é importante para aqueles que estarão em contato com as novas gerações. “Eu fico bem feliz que alunos de licenciatura frequentem as aulas, pois são eles que vão falar para as crianças. O que eles aprendem aqui será disseminado para uma geração que já veio muito mais preparada para compreender o que é o especismo. Quem sabe um dia a gente nem coma mais os animais.”
O especismo, um dos conceitos que os alunos aprendem ao longo do semestre, se refere à discriminação arbitrária contra membros de outras espécies, em favor da espécie humana. O termo foi cunhado em 1970, pelo psicólogo inglês Richard Ryder, que era adepto da vivissecção, mas a partir de determinado momento passou a perceber a prática como injusta, posicionando-se contra a exploração de animais para a experimentação científica. Sua inspiração para criar a nomenclatura “especismo” partiu de uma analogia com o racismo e o sexismo, formas de preconceito já amplamente condenáveis. A bibliografia da disciplina de Zanetti, portanto, tem um caráter anti-especista – inclui clássicos como “Libertação animal”, de Peter Singer; e “Introdução aos Direitos Animais”, de Gary Francione.
Além da disciplina, que é ofertada exclusivamente aos alunos do curso de Ciências Biológicas, no próximo semestre o professor também coordenará o curso de extensão “Uma introdução ao debate sobre a consideração moral dos animais não humanos”. A atividade, realizada em parceria com o pesquisador Luciano Cunha, será aberta a toda a comunidade interna e externa à UFSC. “O objetivo é introduzir as questões centrais sobre ética animal, tanto as abordagens clássicas, quanto as mais atuais”, explica Zanetti. “Nossa ideia é que os participantes compreendam os principais argumentos em discussão sobre esse tema e consigam avaliá-los criticamente, entendendo os conceitos e sabendo discernir as posições divergentes.” O curso ocorrerá todas as terças-feiras, das 10h10 às 11h50, de agosto a dezembro. O período de inscrições e local das aulas serão divulgados em breve.