Depois de cinco dias operando feridos da guerra da Palestina na Faixa de Gaza, o cirurgião plástico Zulmar Antonio Accioli de Vasconcellos, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica de Santa Catarina (SBCP-SC), desembarcou em Florianópolis. Esta foi a sua sétima viagem ao Oriente Médio como integrante de organizações que prestam apoio humanitário na região. Desta vez, a ação foi coordenada pelo Consulado da França em Jerusalém.
A aventura do brasileiro, único sul-americano na missão, começou na manhã de 25 de fevereiro, quando partiu para São Paulo. De lá, embarcou rumo a Paris, onde chegou no dia seguinte, sendo hóspede do amigo e cirurgião Christophe Oberlin, organizador do grupo de médicos humanitários. Vasconcellos aproveitou sua passagem pela capital francesa para ministrar aula prática de cirurgia reconstrutiva como professor convidado da Universidade René Descartes – Paris V, a mesma em que cursou doutorado em medicina. Na ocasião, também participou de uma cirurgia de um paciente com paralisia, na clínica Marcadet.
Dia 28 de fevereiro, o catarinense desce em Tel Aviv , Israel, sendo retido por três horas no aeroporto – procedimento até considerado normal, por causa da zona de conflito árabe-israelense. Após mais uma hora a bordo de um táxi, chega a Jerusalém, encontrando o restante do grupo: dois anestesistas, dois cirurgiões plásticos e cinco ortopedistas, sendo um australiano, uma norte-americana, uma espanhola, três britânicos e três franceses. Com exceção do brasileiro e dos franceses, esta era a primeira vez que eles participavam de uma ação humanitária naquele lugar do planeta.
Os médicos ficaram alojados na Maison d’Abraham, antigo mosteiro e atual hospedaria de peregrinos, dirigida por um padre holandês, contíguo ao Monte das Oliveiras. As velhas celas transformadas em quartos não tinham grande conforto, mas havia internet por WiFi e uma bela vista da cidade histórica, incluindo a dourada Cúpula do Domo da Rocha, reconhecida como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A fronteira
Manhã de 1º de março, domingo, 8h00. A missão parte em direção à Faixa de Gaza abaixo de neve. A temperatura oscilava em torno de zero grau centígrado. Segundo Vasconcellos, de todas as sete viagens, esta foi a de frio mais intenso, com chuvas incomuns. Descida a serra, depois de uma hora de van, o clima já ganhara cinco graus para cima. Estavam próximos ao Mar Mediterrâneo. Na localidade de Eretz, o grupo passaria por uma entrada nova para chegar ao território palestino.
Apenas três integrantes foram autorizados a atravessar, enquanto o brasileiro e mais seis colegas tiveram que aguardar a permissão em pé, sob chuva, sem banheiro, até por volta das 18h00. Foi neste momento que soou o alarme antiaéreo e um míssil Kassan disparado pelos palestinos cortou o céu em direção à cidade israelense de Ashkelon, atingindo uma escola, por sorte vazia. Todos foram orientados a se abaixar e sentar no chão molhado, de tão próximo que era o local. Dali, foi possível ouvir a explosão e ver a fumaça. Uma equipe de TV da rede Skynet Express, que voltava para Israel, entrevistou o grupo sobre aquela desagradável condição de espera.
Além da exaustão causada pela demora de uma definição, a travessia só pode ser feita durante o dia. Diante do insucesso, decidiram retornar à cidade sagrada. Enquanto isso, o coordenador da missão, em contato com o ministro das relações exteriores da França, Bernard Kushner, tentava desfazer o entrave diplomático. O chefe de gabinete do chanceler francês telefonou ao Quai d’Orsay – equivalente ao Itamaraty no Brasil – e um diplomata de plantão garantiu a entrada do restante do grupo, após discutir o assunto com o embaixador de Israel em Paris e com o embaixador da França em Jerusalém. À noite, ainda em trânsito, os humanitários receberam a notícia de que todos passariam.
Chegada à Gaza
No domingo, pela manhã, os médicos se dirigiram novamente à fronteira, com a certeza de que entrariam na Faixa de Gaza. Depois de vistoriada a documentação em Eretz, atravessaram a pé um corredor murado. Neste local não é permitido fotografar, nem gravar imagens em vídeo. Tudo é monitorado por circuito interno de TV e por um balão de observação, pairando no céu daquela área. Findo o corredor, foi preciso andar mais um quilômetro, aproximadamente, carregando a bagagem. Pelo caminho inóspito, havia somente sinais de prédios destruídos, alguma vegetação e a estrada esburacada pela passagem de tanques militares.
Chegando a uma guarita, já no lado palestino, o grupo se dividiu em duas ambulâncias do Crescente Vermelho (equivalente à Cruz Vermelha Internacional). Uma levou o cirurgião plástico brasileiro, mais um ortopedista australiano, um cirurgião britânico especializado em mão, uma ortopedista espanhola, um anestesista francês e uma cirurgiã plástica inglesa para Gaza City. A outra seguiu com os demais para a cidade de Khan Yunes, ao Sul da Faixa de Gaza, fronteira com o Egito, onde os radicais do Hamas estão concentrados, portanto, uma região mais violenta. “A cidade de Gaza está muito calma”, considerou Vasconcellos.
O catarinense e seus colegas foram levados ao hospital Al Shifa (A Cura), onde ele já havia atuado em missões anteriores. As paredes externas estavam alvejadas por tiros de metralhadora e, no estacionamento em frente, acomodavam-se os restos retorcidos de uma ambulância destruída por um míssil, durante a onda de conflitos que ocorreu entre dezembro de 2008 e janeiro deste ano. Lá, reencontrou médicos que ajudou a formar com aulas práticas e teóricas e ex-pacientes restabelecidos de cirurgias realizadas na última visita. Cerca de 100 pessoas, não só os feridos de guerra, mas vítimas de todo tipo de doença, os aguardavam. Antes, porém, ouviram as boas-vindas e o discurso pró-Hamas do diretor do hospital.
Durante cinco dias, da manhã ao anoitecer, o cirurgião plástico atendeu entre 50 e 60 pacientes, tendo operado quatro crianças, um adulto e um idoso, nenhum militar. E, nos intervalos das cirurgias, recebia mais gente para consulta. “Muitas coisas os médicos de lá já estão fazendo. Hoje, os de fora orientam mais que operam”, observou o único professor destinado a Gaza City. O outro foi deslocado para Khan Yunes. Após o expediente, o grupo jantava em restaurantes próximos, na casa de algum conhecido ou no Marna House Hotel – o mesmo frequentado pela imprensa internacional –, onde ficou hospedado.
Retorno
Dia 7 de março de manhã, a equipe deixou Gaza City, desembarcando em Jerusalém perto do meio-dia. Os médicos curtiram uma tarde de turismo, anônimos, junto a milhares de visitantes de todas as partes do mundo. Uma confluência de nacionalidades marcadamente notada na missa do Santo Sepulcro. Peregrinos em nome da paz, ironicamente no lugar onde arde a mais abrasadora fogueira da intolerância humana. À noite, jantar na parte nova da cidade e preparativos para retornar ao Ocidente.
Ainda cedo do dia 8, o brasileiro fez o caminho de volta à Europa: Jerusalém-Tel Aviv-Paris. Chegou na hora do almoço. Reviu amigos e lugares por onde passou durante os quase cinco anos em que fez sua pós-graduação e passeou pela capital francesa. Dia 10: embarque para São Paulo. Vasconcellos aterrissou no Aeroporto Internacional Hercílio Luz, em Florianópolis, na manhã de 11 de março. À tarde, já estava em sua clínica para retomar a sua agenda de pacientes.
Balanço
O cirurgião plástico catarinense e o coordenador da missão assinaram o relatório entregue ao Consulado da França, contentes com o resultado. Consideraram um sucesso, ainda mais se comparada ao desempenho do grupo que seguiu para Khan Yunes. A interferência dos militares era tamanha que não se conseguiu atender um número maior de pacientes.
Vasconcellos não tem a intenção de voltar a integrar ações voluntárias na região, “pela politização das missões, que são pró-Palestina. Não se pode misturar lado humanitário e lado político. Isso atrapalhou, poderíamos ter operado mais se tivéssemos entrado antes”, diz. Por outro lado, “já há sete médicos formados por nós e nove estão em formação. O que, com o tempo, vai diminuir a necessidade da presença estrangeira”, completa.
O recrudescimento dos ataques gera grande e rápida demanda nos hospitais. Há falta de gente para atender tantos pacientes e as equipes disponíveis não são suficientemente preparadas – daí a urgência de se formar ações humanitárias. Os estrangeiros encontram equipamentos sucateados, em sua maioria doações de outros países, porém uma melhor receptividade por parte dos profissionais locais. Cientes da rica colaboração dos visitantes, boa parte dos médicos palestinos radicalizou-se contra ou a favor do domínio extremista do Hamas.
O medo do futuro incerto é maior que o alento de US$ 4,48 bilhões doados por 70 países, inclusive o Brasil, para reerguer a Faixa de Gaza. A reconstrução pode ruir-se novamente, a qualquer momento, ameaçada pelo menor atrito provocado pelo ódio étnico.